domingo, 31 de março de 2013



A Importância dos Estudos de Pré-Formulação Durante o Desenvolvimento de Produtos

                                                                                                            Jair Calixto

Introdução

O desenvolvimento farmacotécnico de produtos sempre foi acompanhado por certa dose de empirismo. Havia, no passado, alguma informação científica  direcionando o desenvolvimento de produtos farmacêuticos, quase sempre baseada no conhecimento prévio e na experiência do profissional ou nas poucas referências técnicas disponíveis. Porém, felizmente, trata-se do passado. As tecnologias disponíveis, o avanço da ciência, o maior conhecimento sobre as características dos excipientes e dos insumos farmacêuticos ativos, aliada à crescente tecnologia aplicada aos equipamentos, fizeram com que o desenvolvimento de produtos deixasse de ser meramente empírico e passasse a contemplar abordagens científicas.

Conceitos do ICH Q 8(R2)

Recentemente o International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use (ICH) disponibilizou um documento estabelecendo conceitos no sentido de se adotar conhecimentos científicos e com a aplicação de novas abordagens sobre o desenvolvimento de produtos.

Do Guia Desenvolvimento Farmacêutico Q8(R2) do ICH, destaca-se dentre esses novos e importantes conceitos definidos, os seguintes:

Design Space (Espaço de Concepção)

É a combinação e a interação multidimensional de variáveis de entrada (por exemplo, atributos do material) e parâmetros do processo que demonstram garantir a qualidade. Esta garantia ocorre por meio do estabelecimento de estudos interrelacionados entre as diversas variáveis de processo, com a definição de limites máximos e mínimos dos parâmetros críticos.

É de se notar, que este conceito comporta e admite a aplicação dos estudos de Pré-formulação e do Delineamento de Experimentos.

Todas as faixas provadas de especificação dentro do espaço de concepção não são consideradas como alteração. A movimentação para fora do espaço de concepção é considerada uma alteração e normalmente iniciaria um processo regulatório de alteração pós-registro.

A Figura 1 demonstra os limites ocupados do espaço de concepção. O espaço de operação é menor, consequentemente não haveria risco para os processos, caso houvesse um desvio para fora do espaço de operação. A garantia é o espaço de concepção, que pode fazer parte do dossiê de registro do produto.




Atributos Críticos de Qualidade (ACQs) do Processo e Controle do Processo

Devem ser determinados os parâmetros críticos do processo, os quais podem causar impacto na eficácia, na segurança e na qualidade do produto, quando não controlados de maneira adequada. Os parâmetros críticos de qualidade garantem a liberação do produto final dentro das especificações estabelecidas no início do desenvolvimento e devem fazer parte dos testes de Controle em Processo. O Controle em Processo dos ACQs e demais especificações servirão como ferramentas de garantia para que as etapas do processo possam fluir conforme planejado no desenvolvimento do produto.

Assim, um Parâmetro Crítico de Processo (PCP), pode ser definido como um parâmetro de processo, cuja variabilidade pode apresentar impacto no atributo crítico de qualidade, deve ser monitorado ou controlado para garantir que o processo produza a qualidade desejada.

Qualidade por Concepção (QpC)

Abordagem sistemática para o desenvolvimento, que começa com objetivos pré-definidos e enfatiza o entendimento do processo, do produto e do controle de processo, baseados na ciência sólida e no gerenciamento do risco da qualidade. Qualidade por concepção é definir requisitos de qualidade desejáveis desde o desenvolvimento do produto.  É estabelecer tais requisitos antes mesmo de ter a formulação definida.

Atributos Críticos de Qualidade (ACQs)

Propriedade ou característica física, química, biológica, ou microbiológica que deve estar dentro de um limite, faixa ou distribuição, apropriados para garantir a qualidade do produto desejado. Os ACQs são, geralmente, associados com o ativo, excipientes, intermediários (materiais em processo) e com o medicamento.

ACQs de formas farmacêuticas sólidas orais são tipicamente aqueles aspectos que afetam a pureza do produto, a concentração, a liberação do fármaco e a estabilidade. ACQs para outros sistemas de liberação podem, adicionalmente, incluir mais aspectos específicos de produto, tais como: propriedades aerodinâmicas para produtos inalados, esterilidade  para parenterais, e propriedades de adesão para adesivos transdérmicos. Para os ativos, matérias-primas e intermediários, os ACQs podem adicionalmente incluir propriedades (por  exemplo, distribuição do tamanho da partícula, densidade do granel) que afetam os ACQs dos medicamentos.

Estudos de Pré-Formulação

Os estudos de pré-formulação estão inseridos na abrangência do Quality by Design, ou Qualidade por Concepção.

É uma importante etapa do processo de desenvolvimento de produtos e requer avaliação cuidadosa dos pesquisadores. A pré-formulação é uma triagem prévia do estudo de estabilidade, baseada em dados físico-químicos conhecidos das matérias-primas.

Antes de desenvolver o produto, a empresa deve saber e conhecer qual é o uso pretendido do produto e qual o desempenho que dele se espera. Definição aceitável para pré-formulação é a investigação da estabilidade das propriedades físico-químicas do insumo farmacêutico ativo isoladamente, dos excipientes e da combinação entre eles, ou seja, entre fármaco e excipientes e entre os próprios excipientes.

Para a investigação das propriedades do insumo existem técnicas modernas que podem demonstrar se o fármaco (Insumo Farmacêutico Ativo - IFA) possui polimorfos, se a estrutura e a forma do cristal é a correta, entre outras. Estes fatores impactam na solubilidade do produto final, com conseqüências na biodisponibilidade e absorção do fármaco.

Técnicas modernas como Calorimetria Exploratória Diferencial (DSC),  Determinação da Massa e da área superficial específica ou Difração de raios X, podem determinar o polimorfismo, o tamanho do cristal, a forma e confirmar se a solubilidade está afetada ou não.

Objetivos da pré-formulação

Gerar informações úteis ao formulador sobre as características dos fármacos e dos excipientes para o desenvolvimento de formas farmacêuticas estáveis, seguras, eficazes e com biodisponibilidade adequada.

Estabelecer testes prévios com o fármaco (IFA), com os excipientes prováveis e com os excipientes e o IFA para verificar estabilidade, degradação, compatibilidade, quando submetidos a condições de temperatura, umidade, oxigênio, metais, luz, pH.

Caracterização de excipientes e fármacos

Parte dos estudos de pré-formulação são direcionados à eficiente identificação e caracterização dos fármacos e dos excipientes. A caracterização relaciona-se com a qualidade da formulação, do processo farmacêutico e da obtenção do produto final.

Modernas técnicas ou mesmos as antigas, dotadas de elevada tecnologia, podem auxiliar o formulador, em caso de dúvidas, a identificar corretamente os insumos a serem utilizados na formulação.

Como não estão descritos em farmacopéias, tais testes de caracterização são úteis para complementar os testes farmacopeicos e demonstrar ao formulador características específicas de determinado insumo, que podem ser importantes para o processo e para o uso pretendido.
Cita-se testes complementares úteis para caracterizar fármacos e excipientes:
I.                    Tamanho e forma dos cristais: Solubilidade, biodisponibilidade;
II.                  Análise de distribuição granulométrica: Fármacos de baixa solubilidade;
III.                Faixa de fusão: Pureza de um fármaco;
IV.                Densidade compactada: Determinação especificações processo;
V.                  Massa e área superficial específicas: Fármacos de baixa solubilidade;
VI.                Termogravimetria: Umidade, voláteis, resíduos, pureza substância cristalina;
VII.              Calorimetria Exploratória Diferencial (DSC): Polimorfismo;
VIII.            Espectrofotometria na região do infravermelho (IV): Identificação;
IX.                Espectrofotometria na região do ultravioleta: Identificação;
X.                  Porosidade das partículas: Liberação, molhabilidade;
XI.                Difração de raios X = Estrutura cristalina, polimorfismo.

Parâmetros a serem investigados

Diversas características específicas dos insumos poderão ser investigadas, dependendo do uso pretendido do insumo e seu desempenho na formulação. Para os fármacos e excipientes, alguns dos parâmetros, conforme sugerido abaixo, podem ser importantes de serem determinados no estudo dos IFAs, tais como:

XII.              Propriedades organolépticas;
XIII.            Solubilidade;
XIV.            Pureza;
XV.              Teor de água;
XVI.            Dissolução intrínseca;
XVII.          Tamanho de partícula, forma e área superficial;
XVIII.        Parâmetros que afetam a absorção
• Coeficiente de partição
• Constante de ionização
• Permeabilidade
XIX.            Ponto de fusão;
XX.              Propriedade do cristal e polimorfismo;
XXI.            Escoamento (fluidez);
XXII.          Densidade;
XXIII.        Compressibilidade;
XXIV.        Higroscopicidade;
XXV.          Molhabilidade;
XXVI.        Viscosidade;
XXVII.      Concentrações usuais permitidas;
XXVIII.    Estabilidade térmica, hidrólise, oxidação, fotólise, íons metálicos, pH.

Delineamento de Experimentos (Testes)

A matriz de experimentos exemplificada na Figura 2 é apenas uma sugestão de combinação entre diversos insumos sob variadas condições de estresse, objetivando identificar aquelas misturas com o maior grau possível de compatibilidade. O resultado é a obtenção de composição de insumos, ativos e excipientes, com as características de estabilidade, compatibilidade e qualidade adequadas para iniciar o desenvolvimento da formulação, com o mínimo de falhas possível.



Deste modo, aplicando-se a matriz de testes com os insumos e as respectivas condições de estresse determinadas pelo formulador, baseada na criticidade da formulação e do resultado que se pretende obter, podem ser verificados resultados que demonstram a compatibilidade dos excipientes e dos IFAs. As possíveis alterações podem ocorrer, por exemplo, na forma de:
• Cor da mistura;
• Mudança no pH;
• Alteração do cristal;
• Aparecimento de pó amorfo;
• Higroscopicidade;
• Modificação na Solubilidade;
• Alteração no Teor;
• Alteração no Escoamento;
• Alteração na Compressibilidade;
• Diminuição da Molhabilidade.

Polimorfismo¹

A existência de duas ou mais estruturas cristalinas organizadas a partir de um único tipo de molécula. A natureza cristalina requer uma unidade tridimensional que se repete indefinidamente. A forma com maior ponto de fusão normalmente é designada como forma I ou forma A - convenção nem sempre seguida.

Os polimorfos apresentam diferentes propriedades físicas, tais como: ponto de fusão, solubilidade, densidade etc.

Após estes testes, identifica-se os resultados que apresentaram maior compatibilidade para aplicação no desenvolvimento da formulação.

Conclusão

É sensato dedicar um tempo maior ao planejamento e à execução do desenvolvimento do produto, evitando-se problemas com a sua qualidade, funcionalidade e eficácia.

Assim, as ferramentas e os testes sugeridos aqui, podem ser úteis para o formulador desenhar um produto conforme o uso pretendido, diminuindo as possibilidades de retrabalho, as alterações pós-registro ou aparecimento de falhas e desvios de qualidade.

Referências Bibliográficas

Botet, Jordi. Sistema de Calidad Farmacéutica Del Siglo XXI. S.Paulo:Editora RCN, 2008.
International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human use ICH Harmonised Tripartite Guideline. ICH Q8 (R2) – Pharmaceutical Development. ICH, Step 4 version, 2009.
_______________________ ICH Harmonised Tripartite Guideline. ICH Q10 – Pharmaceutical  Quality System. ICH. Step 4 version, June 2008.
Moretto, LD; Calixto, J. Estrutura do Novo Sistema da Qualidade para a Indústria Farmacêutica. São Paulo: Finazzi Propaganda, volume 5, 2009.
Moretto, LD; Calixto, J. Guias IPEC Excipientes - Boas Práticas de Fabricação - Boas Práticas de Distribuição. São Paulo: Finazzi Propaganda, volume 7, 2009
Rosário Matos, Jivaldo, Prof. Análise Térmica aplicada a fármacos e medicamentos - Seminário solidário Pré-formulação. São Paulo: Sindusfarma, out/2010
Brittes Funck, J. A., Dr. Palestra: Novas Tendências Analíticas na Caracterização de Insumos farmacêuticos. Seminário Academia Nacional de Farmácia. São Paulo: Sindusfarma, ago/2010.

¹Conforme apresentação do Professor Givaldo no workshop Pré-formulação

Nenhum comentário:

Postar um comentário