A
Importância dos Estudos de Pré-Formulação Durante o Desenvolvimento de Produtos
Jair Calixto
Introdução
O desenvolvimento farmacotécnico de produtos sempre
foi acompanhado por certa dose de empirismo. Havia, no passado, alguma
informação científica direcionando o
desenvolvimento de produtos farmacêuticos, quase sempre baseada no conhecimento
prévio e na experiência do profissional ou nas poucas referências técnicas
disponíveis. Porém, felizmente, trata-se do passado. As tecnologias
disponíveis, o avanço da ciência, o maior conhecimento sobre as características
dos excipientes e dos insumos farmacêuticos ativos, aliada à crescente
tecnologia aplicada aos equipamentos, fizeram com que o desenvolvimento de
produtos deixasse de ser meramente empírico e passasse a contemplar abordagens
científicas.
Conceitos do
ICH Q 8(R2)
Recentemente o International Conference on
Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for
Human Use (ICH) disponibilizou um documento estabelecendo conceitos no sentido
de se adotar conhecimentos científicos e com a aplicação de novas abordagens sobre
o desenvolvimento de produtos.
Do Guia Desenvolvimento Farmacêutico Q8(R2) do ICH,
destaca-se dentre esses novos e importantes conceitos definidos, os seguintes:
Design Space (Espaço de Concepção)
É a combinação e a interação multidimensional de
variáveis de entrada (por exemplo, atributos do material) e parâmetros do
processo que demonstram garantir a qualidade. Esta garantia ocorre por meio do
estabelecimento de estudos interrelacionados entre as diversas variáveis de
processo, com a definição de limites máximos e mínimos dos parâmetros críticos.
É de se notar, que este conceito comporta e admite
a aplicação dos estudos de Pré-formulação e do Delineamento de Experimentos.
Todas as faixas provadas de especificação dentro do
espaço de concepção não são consideradas como alteração. A movimentação para
fora do espaço de concepção é considerada uma alteração e normalmente iniciaria
um processo regulatório de alteração pós-registro.
A Figura 1
demonstra os limites ocupados do espaço de concepção. O espaço de operação é
menor, consequentemente não haveria risco para os processos, caso houvesse um desvio para fora do espaço de operação. A garantia é o espaço de concepção, que pode fazer parte do dossiê de registro do produto.
Atributos Críticos de Qualidade (ACQs) do
Processo e Controle do Processo
Devem ser determinados os parâmetros críticos do
processo, os quais podem causar impacto na eficácia, na segurança e na
qualidade do produto, quando não controlados de maneira adequada. Os parâmetros
críticos de qualidade garantem a liberação do produto final dentro das especificações estabelecidas no início do
desenvolvimento e devem fazer parte dos testes de Controle em Processo. O
Controle em Processo dos ACQs e demais especificações servirão como ferramentas
de garantia para que as etapas do processo possam fluir conforme planejado no desenvolvimento
do produto.
Assim, um Parâmetro Crítico de Processo (PCP), pode
ser definido como um parâmetro de processo, cuja variabilidade pode apresentar
impacto no atributo crítico de qualidade, deve ser monitorado ou controlado para garantir que o
processo produza a qualidade desejada.
Qualidade
por Concepção (QpC)
Abordagem sistemática para o desenvolvimento, que
começa com objetivos pré-definidos e enfatiza o entendimento do processo, do produto
e do controle de processo, baseados na ciência sólida e no gerenciamento do
risco da qualidade. Qualidade por concepção é definir requisitos de qualidade
desejáveis desde o desenvolvimento do produto.
É estabelecer tais requisitos antes mesmo de ter a formulação definida.
Atributos
Críticos de Qualidade (ACQs)
Propriedade ou característica física, química,
biológica, ou microbiológica que deve estar dentro de um limite, faixa ou
distribuição, apropriados para garantir a qualidade do produto desejado. Os
ACQs são, geralmente, associados com o ativo, excipientes, intermediários
(materiais em processo) e com o medicamento.
ACQs de formas farmacêuticas sólidas orais são
tipicamente aqueles aspectos que afetam a pureza do produto, a concentração, a
liberação do fármaco e a estabilidade. ACQs para outros sistemas de liberação podem,
adicionalmente, incluir mais aspectos específicos de produto, tais como:
propriedades aerodinâmicas para produtos inalados, esterilidade para parenterais, e propriedades de adesão
para adesivos transdérmicos. Para os ativos, matérias-primas e intermediários,
os ACQs podem adicionalmente incluir propriedades (por exemplo, distribuição do tamanho da partícula,
densidade do granel) que afetam os ACQs dos medicamentos.
Estudos de
Pré-Formulação
Os estudos de pré-formulação estão inseridos na
abrangência do Quality by Design, ou Qualidade por Concepção.
É uma importante etapa do processo de
desenvolvimento de produtos e requer avaliação cuidadosa dos pesquisadores. A
pré-formulação é uma triagem prévia do estudo de estabilidade, baseada em dados
físico-químicos conhecidos das matérias-primas.
Antes de desenvolver o produto, a empresa deve
saber e conhecer qual é o uso pretendido do produto e qual o desempenho que
dele se espera. Definição aceitável para pré-formulação é a investigação da
estabilidade das propriedades físico-químicas do insumo farmacêutico ativo
isoladamente, dos excipientes e da combinação entre eles, ou seja, entre
fármaco e excipientes e entre os próprios excipientes.
Para a investigação das propriedades do insumo
existem técnicas modernas que podem demonstrar se o fármaco (Insumo
Farmacêutico Ativo - IFA) possui polimorfos, se a estrutura e a forma do cristal é a correta, entre outras. Estes
fatores impactam na solubilidade do produto final, com conseqüências na
biodisponibilidade e absorção do fármaco.
Técnicas modernas como Calorimetria Exploratória
Diferencial (DSC), Determinação da Massa
e da área superficial específica ou Difração de raios X, podem determinar o
polimorfismo, o tamanho do cristal, a forma e confirmar se a solubilidade está
afetada ou não.
Objetivos da
pré-formulação
Gerar informações úteis ao formulador sobre as
características dos fármacos e dos excipientes para o desenvolvimento de formas
farmacêuticas estáveis, seguras, eficazes e com biodisponibilidade adequada.
Estabelecer testes prévios com o fármaco (IFA), com
os excipientes prováveis e com os excipientes e o IFA para verificar
estabilidade, degradação, compatibilidade, quando submetidos a condições de
temperatura, umidade, oxigênio, metais, luz, pH.
Caracterização
de excipientes e fármacos
Parte dos estudos de pré-formulação são
direcionados à eficiente identificação e caracterização dos fármacos e dos
excipientes. A caracterização relaciona-se com a qualidade da formulação, do
processo farmacêutico e da obtenção do produto final.
Modernas técnicas ou mesmos as antigas, dotadas de
elevada tecnologia, podem auxiliar o formulador, em caso de dúvidas, a
identificar corretamente os insumos a serem utilizados na formulação.
Como não estão descritos em farmacopéias, tais
testes de caracterização são úteis para complementar os testes farmacopeicos e
demonstrar ao formulador características específicas de determinado insumo, que podem ser importantes
para o processo e para o uso pretendido.
Cita-se testes complementares úteis para
caracterizar fármacos e excipientes:
I.
Tamanho e forma dos cristais: Solubilidade,
biodisponibilidade;
II.
Análise de distribuição granulométrica: Fármacos
de baixa solubilidade;
III.
Faixa de fusão: Pureza de um fármaco;
IV.
Densidade compactada: Determinação
especificações processo;
V.
Massa e área superficial específicas: Fármacos
de baixa solubilidade;
VI.
Termogravimetria: Umidade, voláteis, resíduos,
pureza substância cristalina;
VII.
Calorimetria Exploratória Diferencial (DSC):
Polimorfismo;
VIII.
Espectrofotometria na região do infravermelho (IV):
Identificação;
IX.
Espectrofotometria na região do ultravioleta:
Identificação;
X.
Porosidade das partículas: Liberação, molhabilidade;
XI.
Difração de raios X = Estrutura cristalina,
polimorfismo.
Parâmetros a
serem investigados
Diversas características específicas dos insumos
poderão ser investigadas, dependendo do uso pretendido do insumo e seu
desempenho na formulação. Para os fármacos e excipientes, alguns dos
parâmetros, conforme sugerido abaixo, podem ser importantes de serem
determinados no estudo dos IFAs, tais como:
XII.
Propriedades organolépticas;
XIII.
Solubilidade;
XIV.
Pureza;
XV.
Teor de água;
XVI.
Dissolução intrínseca;
XVII.
Tamanho de partícula, forma e área superficial;
XVIII.
Parâmetros que afetam a absorção
• Coeficiente de partição
• Constante de ionização
• Permeabilidade
XIX.
Ponto de fusão;
XX.
Propriedade do cristal e polimorfismo;
XXI.
Escoamento (fluidez);
XXII.
Densidade;
XXIII.
Compressibilidade;
XXIV.
Higroscopicidade;
XXV.
Molhabilidade;
XXVI.
Viscosidade;
XXVII.
Concentrações usuais permitidas;
XXVIII.
Estabilidade térmica, hidrólise, oxidação,
fotólise, íons metálicos, pH.
Delineamento
de Experimentos (Testes)
A matriz de experimentos exemplificada na Figura 2 é apenas uma sugestão de
combinação entre diversos insumos sob variadas condições de estresse,
objetivando identificar aquelas misturas com o maior grau possível de
compatibilidade. O resultado é a obtenção de composição de insumos, ativos e excipientes,
com as características de estabilidade, compatibilidade e qualidade adequadas
para iniciar o desenvolvimento da formulação, com o mínimo de falhas possível.
Deste modo, aplicando-se a matriz de testes com os
insumos e as respectivas condições de estresse determinadas pelo formulador,
baseada na criticidade da formulação e do resultado que se pretende obter, podem
ser verificados resultados que demonstram a compatibilidade dos excipientes e
dos IFAs. As possíveis alterações podem ocorrer, por exemplo, na forma de:
• Cor da mistura;
• Mudança no pH;
• Alteração do cristal;
• Aparecimento de pó amorfo;
• Higroscopicidade;
• Modificação na Solubilidade;
• Alteração no Teor;
• Alteração no Escoamento;
• Alteração na Compressibilidade;
• Diminuição da Molhabilidade.
Polimorfismo¹
A existência de duas ou mais estruturas cristalinas
organizadas a partir de um único tipo de molécula. A natureza cristalina requer
uma unidade tridimensional que se repete indefinidamente. A forma com maior
ponto de fusão normalmente é designada como forma I ou forma A - convenção nem
sempre seguida.
Os polimorfos apresentam diferentes propriedades
físicas, tais como: ponto de fusão, solubilidade, densidade etc.
Após estes testes, identifica-se os resultados que
apresentaram maior compatibilidade para aplicação no desenvolvimento da
formulação.
Conclusão
É sensato dedicar um tempo maior ao planejamento e
à execução do desenvolvimento do produto, evitando-se problemas com a sua qualidade,
funcionalidade e eficácia.
Assim, as ferramentas e os testes sugeridos aqui,
podem ser úteis para o formulador desenhar um produto conforme o uso
pretendido, diminuindo as possibilidades de retrabalho, as alterações
pós-registro ou aparecimento de falhas e desvios de qualidade.
Referências
Bibliográficas
Botet, Jordi. Sistema de Calidad Farmacéutica Del
Siglo XXI. S.Paulo:Editora RCN, 2008.
International
Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of
Pharmaceuticals for Human use ICH Harmonised Tripartite Guideline. ICH Q8 (R2)
– Pharmaceutical Development. ICH, Step 4 version, 2009.
_______________________ ICH Harmonised Tripartite Guideline. ICH Q10 –
Pharmaceutical Quality System. ICH. Step
4 version, June 2008.
Moretto, LD; Calixto, J. Estrutura do Novo Sistema
da Qualidade para a Indústria Farmacêutica. São Paulo: Finazzi Propaganda,
volume 5, 2009.
Moretto, LD; Calixto, J. Guias IPEC Excipientes -
Boas Práticas de Fabricação - Boas Práticas de Distribuição. São Paulo: Finazzi
Propaganda, volume 7, 2009
Rosário Matos, Jivaldo, Prof. Análise Térmica
aplicada a fármacos e medicamentos - Seminário solidário Pré-formulação. São
Paulo: Sindusfarma, out/2010
Brittes Funck, J. A., Dr. Palestra: Novas Tendências
Analíticas na Caracterização de Insumos farmacêuticos. Seminário Academia
Nacional de Farmácia. São Paulo: Sindusfarma, ago/2010.
¹Conforme apresentação do Professor Givaldo no
workshop Pré-formulação