Integridade de Dados
Jair Calixto*
INTRODUÇÃO
O assunto deste
artigo tem ganhado projeção através das agências reguladoras do mundo todo
ultimamente, dando formato e nome a um tema bem conhecido dos farmacêuticos que
atuam em controle de qualidade, garantia de qualidade e produção farmacêutica de
medicamentos: o registro fiel, consistente, rastreável, indelével, evidente,
claro e completo das informações e dados gerados nas diversas operações
farmacêuticas envolvidas na obtenção de um determinado produto farmacêutico.
Atualmente damos o nome de Integridade de Dados a este elemento das boas práticas de fabricação
de medicamentos.
O Guia FDA sobre este tema, chamado Data Integrity and Compliance With CGMP
Guidance for Industry, de abril de 2016, define assim a
integridade de dados:
“Para efeitos da presente orientação, a integridade
dos dados refere-se à integralidade, consistência e precisão dos dados. Dados
completos, consistentes e precisos devem ser atribuíveis, legíveis,
contemporaneamente registrados, originais ou cópias fiéis, e precisos (ALCOA).”
¹
O assunto então, não tem nada de novo, mas apenas ganhou roupagem nova,
ganhou definições mais encorpadas e novos elementos, já que a tecnologia de
informação mais e mais invade os equipamentos usados na produção e controle,
principalmente. Assim, os dados eletrônicos passam a constar, também, do rol de
itens relativos à integridade de dados, assim como o seu gerenciamento durante
o ciclo de vida do dado.
Figura 2 – ALCOA -
significados.
Na mesma linha de raciocínio, a
Agência do Reino Unido – MRHA, define assim Integridade de Dados: “A extensão
em que todos os dados são completos, consistentes e acurados através do seu
ciclo de vida”.
Segundo a MRHA, o gerenciamento da integridade de dados envolve “todas
as fases da vida de um dado (incluindo dados brutos) de primeira geração e
gravação através de processamento, uso, retenção de dados, arquivamento /
recuperação e destruição” ². Aqui temos
mais um elemento novo: o gerenciamento do dado durante seu ciclo de vida.
Nesta ampla abordagem atual os dados podem ser manuais, quando se
referirem a anotações em documentos, formulários, cadernos, etiquetas, rótulos,
entre outras marcações/registros em papel ou eletrônicos, quando ocorrer
entrada de dados em softwares, sistemas, aplicativos e equipamentos.
LEGISLAÇÕES BRASILEIRAS PERTINENTES
As legislações atuais citam a necessidade e obrigatoriedade de atendimento
aos princípios da integridade dos dados, contudo, não a nomeiam desta forma.
Vejamos alguns casos presentes na nossa legislação.
RDC nº 17/2010:
Art. 13. Boas
Práticas de Fabricação é a parte da Garantia da Qualidade que assegura que os
produtos são consistentemente produzidos e controlados, com padrões de
qualidade apropriados para o uso pretendido e requerido pelo registro.
§ 3º As BPF
determinam que:
VI - devam ser
feitos registros (manualmente e/ou por meio de instrumentos de registro)
durante a produção para demonstrar que todas as etapas constantes nos
procedimentos e instruções foram seguidas e que a quantidade e a qualidade do
produto obtido estejam em conformidade com o esperado. Quaisquer desvios
significativos devem ser registrados e investigados;
VII - os registros
referentes à fabricação e distribuição, que possibilitam o rastreamento
completo de um lote, sejam arquivados de maneira organizada e de fácil acesso;
Art. 202. Quando os
documentos exigirem a entrada de dados, estes devem ser claros, legíveis e
indeléveis.
Art. 203. Toda
alteração efetuada em qualquer documento deve ser assinada, datada e
possibilitar a leitura da informação original.
Art. 205. Os dados
podem ser registrados por meio de sistema de processamento eletrônico, por
meios fotográficos ou outros meios confiáveis.
§ 1º As fórmulas
mestras/fórmulas padrão e os Procedimentos Operacionais Padrão relativos ao
sistema em uso devem estar disponíveis e a exatidão dos dados registrados deve
ser verificada.
§ 2º Se o registro
dos dados for feito por meio de processamento eletrônico, somente pessoas
designadas podem modificar os dados contidos nos computadores.
§ 3º Deve haver registro
das alterações realizadas.
§ 5º A entrada de
dados considerados críticos, quando inserida manualmente em um sistema, deve
ser conferida por outra pessoa designada.
§ 6º Os registros
eletrônicos dos dados dos lotes devem ser protegidos por meio de cópias em fita
magnética, microfilme, impressão em papel ou outros meios.
§ 7º Durante o
período de retenção, os dados devem estar prontamente disponíveis.
Guias Garantia de Qualidade - ANVISA –
31/10/2006
Ordem de Produção:
Deve existir uma ordem de produção para cada tamanho de lote, que seja
cópia fiel da fórmula padrão/mestre;
Deve haver registro da data de ocorrência de cada etapa e dos tempos de
execução, quando este puder influenciar a qualidade do produto;
Cada etapa deve ser registrada na Ordem de Produção de maneira imediata
ou concomitante à obtenção dos dados ou execução das atividades; os registros
não devem ser executados em momento posterior à execução das atividades.
As operações desempenhadas no processo de produção devem seguir com exatidão
o determinado na Ordem de Produção;
As Ordens de Produção devem ser preenchidas a tinta e não devem conter
rasuras.
Caso sejam necessárias correções, não devem ser utilizadas tintas
corretivas, mas a informação errada deve ser anulada com um único risco e em
seguida retificada. A pessoa que alterou as informações deve rubricar ao lado
da alteração efetuada. As Ordens de Produção devem ser preparadas de forma a
que evitem erros de transcrição;
Deve haver registro de verificações realizadas. Estas deverão ser
efetuadas por pessoa ou sistema diferente da que realizou as atividades.
Procedimentos de Inspeção ANVISA: POP-O-SNVS-014 Revisão: 0
Vigência: 21/07/2014
O POP –O-SNVS-014 utilizado pelo Sistema Nacional e Vigilância Sanitária (ANVISA,
VISAs Estaduais e VISAs Municipais) descreve os exemplos de não conformidades
que podem ser encontradas durante as inspeções, assim como, o seu grau de
criticidade (maior, menor, crítico).
A seguir listamos as principais não conformidades presentes neste
documento relacionadas à integridade de dados.
Reclamações/devoluções/recolhimento
Ausência de registro, avaliação ou investigação de
reclamação relacionada a qualidade, segurança e eficácia de produtos (Maior).
Testes
em matérias-primas e intermediários
Evidência
de falsificação ou adulteração de resultados analíticos (Crítica).
Os dados
brutos não permitem a rastreabilidade de reagentes,
substâncias
químicas de referência, equipamentos, métodos, procedimentos de preparo e registros de cada análise. (Maior)
Evidência de falsificação ou adulteração de dados
de
estabilidade (Crítica)
Falsificação de certificado de análise. (Crítica)
Equipamentos
Ausência de
registros de uso de equipamento (Maior).
Treinamento
Registros de treinamento inadequados
(Menor).
Registros
Há evidência
de falsificação ou adulteração de registros ou dados (Crítica).
Ausência ou não apresentação em tempo adequado de
documentação de fornecedores (Maior).
Inexistência ou registros incompletos de comercialização
(Maior).
Tempo de
guarda insuficiente de documentos e registros (Menor).
Registros relativos a documentos de BPF incompletos ou não mantidos.
(Maior)
FALHAS NA INTEGRIDADE DE DADOS
As falhas que afetam a integridade de
dados são, em sua maioria, não intencionais e derivam de desconhecimento,
sistema da qualidade deficiente e ausência de um treinamento mais consistente.
Porém, quaisquer que sejam as falhas, elas contrariam as Boas Práticas de
Fabricação e sujeitam a empresa a penalidades previstas em legislação.
Quais são os exemplos de falhas na
integridade de dados? Podemos listar algumas, mas a lista não se esgota com
estes exemplos.
Ø Assinaturas em atividades realizadas por
outras pessoas;
Ø “Backdating”, ou
seja, colocar uma data anterior àquela da efetiva realização da atividade;
Ø Dados originais
descartados e registros destruídos;
Ø Entrada posterior
de dados, ou seja, registro não realizado no momento do evento;
Ø Esquecimento ou omissão
de dados;
Ø Investigação inadequada
ou inconsistente dos resultados analíticos fora de especificação;
Ø Pré-entrada de
dados antes da fabricação de um lote;
Ø Preparação prévia
de etiquetas de pesagem antes de sua real ocorrência;
Ø Destruição de
documentos;
Ø Descarte de dados
brutos ou não permitir que sejam rastreáveis;
Ø Repetição de testes
de desenvolvimento com omissão dos dados originais não satisfatórios (incluindo
testes clínicos);
Ø “Fabricação” de
dados ou utilização de dados gerados anteriormente
Ø Transferência
incompleta de dados;
Ø Falta ou alteração
de dados brutos e registros realizados não diretamente nos formulários ou
documentos adequados (pedaços de papel, etiquetas, etc.)
Ø Não seguimento de procedimentos;
Ø Arquivos
eletrônicos sem recursos para controlar e registrar alterações posteriores dos
dados (sem audit trail);
Ø Emissão de
relatórios e tomadas de decisão baseados em dados inexistentes, incompletos ou
inadequados;
Ø Ausência de captura
de dados durante etapas do processo de fabricação;
Ø Esconder dados de
um auditor para impedir a detecção de desvios BPF;
Ø Assinaturas em
documentação durante inspeção (treinamentos, etc.).
Ø Dados removidos ou
alterados;
Ø Falta de controles
de sistemas eletrônicos para impedir alterações não autorizadas (controle de
acesso);
Ø Falhas ou não
realização de back ups de sistemas eletrônicos;
Ø Falhas no controle
do uso de senhas nos sistemas eletrônicos;
Ø Materiais, produtos
e amostras não identificados corretamente;
Ø Inviolabilidade de
dados nos sistemas;
Ø Ausência de
mecanismo para recuperação de dados.
Note-se que a maioria dos exemplos decorrem de procedimentos,
treinamento ou orientação correta aos operadores.
IMPACTOS NA ORGANIZAÇÃO
As falhas de integridade de dados
trazem impactos para a organização. Vários são os possíveis impactos previsíveis,
decorrentes de um gerenciamento inadequado dos dados críticos relativos a
medicamentos, nas diversas áreas de uma empresa farmacêutica. Dependendo de sua
extensão e abrangência, os dados incorretos (não íntegros) podem conduzir a
diversos problemas, prejudicando a empresa sob as mais diversas formas, entre
as quais:
Ø Riscos à segurança,
eficácia e qualidade dos produtos;
Ø Desvios de
qualidade;
Ø Falhas de processo;
Ø Indução ao recolhimento
de produtos;
Ø Interdição da
empresa por meio dos órgãos reguladores;
Ø Possibilidade de
perda da Certificação de Boas Práticas de Fabricação;
Ø Perda de confiança
por parte dos pacientes e acionistas da empresa.
Ø Perda de
credibilidade junto ao órgão regulador;
Ø Riscos à segurança do
paciente;
Ø Perda da qualidade
dos medicamentos;
Ø Perda da imagem da
empresa e, consequentemente, prejuízo nos negócios.
Desta forma, é preciso que os dados
inseridos e registrados em documentos, softwares, sistemas e equipamentos
reflitam o que realmente ocorreu, sob pena de cometer uma infração sanitária
que prejudique a empresa e seus negócios. Medidas, ferramentas e práticas
preventivas devem ser adotadas para evitar que estas falhas possam ocorrer.
MEDIDAS PARA GARANTIR QUE OS DADOS SE MANTENHAM ÍNTEGROS
Várias medidas
podem ser tomadas para eliminar, controlar ou minimizar os riscos de surgimento
de dados não íntegros que possam comprometer a qualidade e segurança dos produtos:
Ø Redação de documentos
técnicos de forma clara e consistente, de modo a não deixar dúvidas quanto a
sua interpretação e uso pelos funcionários.
Ø Elaboração de políticas
e programas específicos relacionados à integridade dos dados.
Ø Instituição do gerenciamento
da integridade de dados em todas as etapas do ciclo de vida do produto.
Ø Elaboração de planos
e estratégias para garantir a minimização de riscos.
Ø Realização de treinamentos
frequentes com os operadores.
Ø Adoção de estratégia
de verificação e avaliação da integridade de dados durante a Revisão Periódica
de Produtos.
Ø Garantia de que as
práticas e procedimentos estejam alinhados com os requisitos para controlar a
integridade dos dados.
Ø Adoção de
princípios de Boas Práticas de Elaboração, Gerenciamento e Arquivo de Documentação.
Adicionalmente, podem ser adotados mecanismos para reduzir a
probabilidade de ocorrência de erros nos documentos e na entrada de dados nos
equipamentos e sistemas. Estes mecanismos, automáticos ou não, contribuem para
a manutenção dos dados íntegros.
A seguir passamos alguns exemplos de mecanismos que podem ser
implantados para esta finalidade.
TREINAMENTOS
O pessoal deve possuir treinamento, capacitação e
experiência na detecção de problemas de integridade de dados como parte de um
programa de treinamento de rotina das BPF.
Estes treinamentos
devem ser frequentes, de modo a transmitir aos colaboradores todas as
informações relacionadas a quaisquer aspectos que envolvam a integridade de
dados e que possam cobrir, com exemplos e situações de rotina, todas as
possibilidades de erros no registro de dados na produção, controle de
qualidade, garantia de qualidade e assuntos regulatórios.
A integridade de
dados deve estar incluída formalmente no programa de treinamentos anuais nas
BPF.
Além dos
treinamentos frequentes, o pessoal deve ser estimulado a apontar eventuais
deficiências no sistema, a fim de aperfeiçoa-lo constantemente.
CONCLUSÕES
O assunto é crítico e deveria envolver uma ação proativa do alto
escalão da empresa, pois o gerenciamento inadequado da integridade de dados pode
comprometer a segurança para o paciente, interferir substancialmente na
qualidade do medicamento; pode afetar a imagem da empresa e consequentemente os
negócios.
Dependendo do grau (maior ou menor) da falha, inquestionavelmente pode
trazer prejuízos diversos, na medida em que a empresa pode enfrentar o risco de
perder seu Certificado de Boas Práticas de Fabricação ou de não tê-lo renovado.
Isto impacta diretamente nos negócios da empresa, trazendo prejuízos, os quais
já são conhecidos.
Dada a sua relevância atualmente, o tema deveria fazer parte do
“compliance” da empresa, além é claro, da Revisão Periódica do Produto e de
treinamentos rotineiros nas áreas afins.
REFERÊNCIAS
As referências abaixo foram utilizadas como base para a redação deste
artigo.
1 FDA. Data Integrity and Compliance With CGMP Guidance
for Industry. DRAFT GUIDANCE
U.S. Department of Health
and Human Services Food and Drug Administration
Center for Drug Evaluation
and Research. Center for Biologics Evaluation and Research. Center for
Veterinary Medicine. Pharmaceutical Quality/Manufacturing Standards. April,
2016.
2 MHRA. GMP Data
Integrity Definitions and Guidance for Industry. March 2015.
3 EMA. Questions and answers: Good manufacturing practice. Data integrity. Disponível em http://www.ema.europa.eu/ema/index.jsp?curl=pages/regulation/q_and_a/q_and_a_detail_000027.jsp&mid=WC0b01ac05800296ca#section16.
Agosto, 2016.
4 WHO. GUIDANCE ON
GOOD DATA AND RECORD MANAGEMENT PRACTICES (SEPTEMBER 2015) DRAFT FOR
COMMENT
*Jair Calixto é Farmacêutico-Bioquímico graduado pela USP e atualmente
é Gerente de Boas Práticas e Auditorias Farmacêuticas do Sindusfarma. E-mail:
jaircalixto@sindusfarma.org.br.